Em tais momentos tentava elevar-me. Tocava no turbante que tinha feito com os restos da minha camisa e dizia em voz alta: "ISTO É O CHAPÉU DE DEUS!"
Batia nas minas calças e dizia em voz alta: "ISTO SÃO AS CALÇAS DE DEUS!"
Apontava para Richard Parker e dizia em voz alta: "ISTO É O GATO DE DEUS!"
Apontava para o barco salva-vidas e dia em voz alta: "ISTO É A ARCA DE DEUS!"
Abria muito as mãos e dizia em voz alta: "ESTAS SÃO AS VASTAS JEIRAS DE DEUS!"
Apontava para o céu e dizia em voz alta: "ISTO É O OUVIDO DE DEUS!"
E deste modo lembrava a mim mesmo a Criação e o meu lugar nela.
Mas o chapéu de Deus estava sempre a desmanchar-se. As calças de Deus caíam aos bocados. O gato de Deus era um perigo constante. A arca de Deus era uma prisão. As vastas jeiras de Deus estavam a matar-me. O ouvido de Deus não parecia ouvir-me.
O desespero era um pesado negrume que não deixava entrar nem sair nenhuma luz. Era um inferno impossível de exprimir. Agradeço a Deus por ele ter sempre passado. Um cardume de peixes aparecia à volta da rede ou um nó precisava de ser refeito. Ou eu pensava na minha família, como eles tinham sido poupados àquela terrível agonia. O negrume agitava-se e finalmente desaparecia, e Deus permanecia, um ponto brilhante de luz no meu coração. E eu continuava a amar.
A vida de Pi, Yann Martel
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