“A cidade e as serras” lido em Lisboa. Porque não poderia ser de outra forma. Pelo menos não aqui, em pleno Alentejo. Soaria a hipocrisia. Esta calma não é doce; é insonsa! Não passa um carro, um pássaro, nada! É arrepiante e desolador o tempo nesta vila fantasma. Não consigo ler de tão esmagador o ruído do silêncio.
Fecho os olhos e relembro. Memórias que surgem desordenadas. A ruazinha da minha ternura. Uns poucos de metros de casas caiadas de branco (aquele branco alvo) de cada lado. E no cimo, como uma cereja no topo de um gelado dos caros, o castelo das minhas brincadeiras. A ti Caternita com os bolinhos de milho tostados, a casa do Miguel por onde eu entrava pela janela, porque já era da casa e não precisava de convite ou aviso.
E aquela vista. Montes e montes uns atrás dos outros, sentada num banco de pedra, almofadado pelas bunganvílias que cresciam de dar gosto! Onde um livro hoje seria bem-vindo. Como eu corria! Trepava as árvores para apanhar as pêras (na verdade isso era o Miguel que fazia porque eu tenho medo das alturas e só trepava baixinho sem chegar lá). Encharcava-me toda de cada vez que tentava beber daqueles bebedouros que estavam sempre pêrros. E esperava pelo fim da tarde para a velhinha do castelo me vender um gelado modesto.
O grito estridente da gorda da Alice a anunciar o almoço com uma terrina de açorda nas mãos. A doce da Alice! A sala de jantar que em mais de vinte anos não mudou, a não ser pelas pessoas nas molduras, que cresciam. Os pacotes de "boca doce" que se acumulavam na cozinha. A figura miudinha do meu tio. De fato e gravata no pico do Verão, como uma personagem num quadro pintado que não muda de roupa.
Senhoras de idade sentadas em cadeiras de praia em frente das casas, umas com leques, outra com fios branquissímos de renda e agulhas reluzentes. Queimam ali as tardes, estação após estação enquanto os dias mornos o permitirem. Conversam, desdentadas, com o seu sotaque pachorrento. As antigas bonecas da minha tia com as quais eu também brinquei. A minha mãe. Num vestido fresco que ainda guardo no fundo do meu armário. Cabelo solto e natural, como a própria vila.
O grande adro da igreja, para a procissão de mexericos que decorria sempre antes e depois da missa. Aquela paisagem amarela a perder de vista com um ocasional sobreiro. Eu pequenina no carro gritando: “Olha pai, vacas!” ... pequenas terras que passavam. Terrinhas com nomes mimosos como “Forninhos” ou “Cabaças”...
Dias plácidos que eu sabia encher. Que aquela pequena vila sabia encher. Uma enorme família de comadres e compadres onde o tempo passava mas a evolução ficava lá fora. Lembro-me de o meu tio ser um dos poucos a ter telefone. De as pessoas passarem lá por casa para utilizar o dito objecto.
Mas o tempo e a evolução passaram fora das muralhas invisíveis. E a vilazinha desertificou-se, como uma árvore perdendo as folhas quando chega o Outono. Agora, no Inverno da sua vida, a terrinha da minha infância são velhos e teias de aranha. Tradições moribundas que se arrastam sem esplendor, como um véu rasgado.
As procissões diminuem o seu trajecto porque os homens não têem a força de antigamente para carregar o andor e as mulheres não têem pernas rijas para os seguir. O meus velhos baloiços, o escorrega, o sobe-e-desce – tudo arrancado do castelo. Agora só ficou areia velha e as fotografias carregadas de memórias. A vila está seca como um poço sem utilidade!
Despeguei-me dessa terra outrora tão amada na esperança de guardar apenas as lembranças de risos e sestas. Leio “A cidade e as serras” na cidade, numa cadeira de baloiço com uma caneca de chá. E relembro aqui essas memórias sumarentas como um pêssego fresco no Verão. Aqui, com a força dos sentidos relembrados, vibrantes, sem me preocurar se correspondem à verdade de agora ou não. E assim me deixo adormecer com os meus fantasmas adocicados...
2 comments:
Beautiful post, Manata :)
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nice... :)
as lembranças enchem-nos. transformam-nos. uma coisinha já passada, guardada em nós faz com cada coisa...
gostei :) *********
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